Quem pode jogar videogame?
Esta é a pergunta fundamental desse artigo e muita gente pode se sentir tentada a responder que qualquer pessoa que tenha acesso a um aparelho que rode jogos pode jogar. Essa resposta traz uma palavra importante que remete imediatamente à acessibilidade nos jogos: “acesso”, e ela permite repensar a pergunta: se poder jogar implica ter acesso a máquinas e jogos então quem tem acesso a eles? Colocada desse modo a pergunta pode evocar questões econômicas: os preços dos games, consoles e PC ‘s podem ser restritivos para muitas pessoas.
Mas, vencida a barreira do preço, será que podemos dizer que jogos são acessíveis para todos? Infelizmente por muito tempo a resposta foi não. Por décadas desenvolveram games tendo em mente uma espécie de “usuário padrão” que era alguém sem qualquer tipo de deficiência física ou cognitiva. Com isso ficaram de fora as cerca de 1 bilhão de pessoas com deficiência que, segundo a organização mundial de saúde, fazem parte da população mundial atualmente.
O mito da capacidade e o desenvolvimento de games
Em geral isso acontecia de forma inconsciente; explico: existe algo chamado capacitismo, o preconceito com pessoas com deficiência, esse tipo de preconceito nem sempre acontece de forma consciente e envolve um certo “mito da capacidade”, uma das ideias equivocadas que faz parte desse mito é a de perceber a pessoa com deficiência como alguém que não é capaz, que não pode fazer coisas com autonomia, inclusive jogar videogame. Com esses equívocos o pensamento capacitista acaba estabelecendo uma ideia de “normalidade” e deixando as pessoas com deficiência fora dela; incentivando, ainda que sem consciência disso, a segregação e invisibilização dessas pessoas.
Numa sociedade em que o pensamento capacitista era comum essas ideias faziam com que os desenvolvedores de jogos sequer pensassem em pessoas com deficiência como usuários dos games que desenvolviam, afinal essas pessoas eram em geral percebidas como incapazes, carentes de tutela e segregadas. Talvez seja mais apropriado dizer que eram mais despercebidas do que percebidas.
Mas isso começou a mudar devido à ação contínua das pessoas com deficiência contra o capacitismo, e -à medida em que vão tornando suas demandas visíveis- se torna mais clara a falta de acesso dessas pessoas a coisas diversas pelo próprio modo como pensavam e projetavam essas coisas, inclusive games. Recentemente, cada vez mais desenvolvedoras, tanto as independentes quanto as grandes, têm se preocupado com a acessibilidade nos jogos.
Afinal, o que é acessibilidade?
Acessibilidade é a possibilidade e condição para uso, com segurança e autonomia, de produtos, serviços e locais diversos por pessoas com deficiência.
Esse conceito parece simples, mas, para quem não sente na pele a falta de acessibilidade nos jogos, pode ser difícil de entender de verdade o que está em jogo.
Vou tentar um exemplo para que, caso você seja uma pessoa sem deficiência, possa ter uma ideia: se você tem mais ou menos a minha idade provavelmente jogou no primeiro Playstation no auge da sua popularidade, talvez naquele momento você tenha se deparado com algum game em japonês sendo que você não falava esse idioma, talvez um RPG em turnos, com muitos diálogos e menus; e lá estava você diante de um jogo que até podia jogar, mas cuja experiência completa estava inacessível pra você por conta da barreira dum idioma que você não dominava. Se projetassem aquele jogo desde o começo para ter outras opções de idioma esse seria uma recurso que daria a você e muito mais gente o acesso à experiência completa daquele game.
Um outro exemplo é uma comparação: um jogo sem recursos de acessibilidade, para uma pessoa com deficiência, é como um jogo com bugs, aqueles bugs chatos que simplesmente te impedem de aproveitar o que o jogo teria a oferecer e deveriam ter sido corrigidos ainda no desenvolvimento do jogo para que não barrassem a experiência do jogador.
Por esses exemplos talvez você possa sentir melhor o que é não ter acesso a uma experiência de jogo e o quão importantes são recursos que removam as barreiras que bloqueiam seu acesso, e se você for uma pessoa com deficiência o mais provável é que já saiba melhor do que eu do que estou falando. Por isso falar de acessibilidade nos jogos é justamente falar de retirar barreiras inconscientemente criadas ao desenvolver jogos com um “usuário padrão” em mente, um usuário que não tem nenhum tipo de deficiência.
Integração e inclusão
Quando, décadas atrás, a questão da acessibilidade se tornou mais visível, passaram a tratá-la numa perspectiva de integração: uma ideia de criar espaços em diversos produtos, serviços e locais para pessoas com deficiências. Mas, com o avanço das lutas das pessoas com deficiência, se passou a pensar acessibilidade em termos de inclusão; a diferença em relação à integração é que na inclusão não se visa criar espaços para pessoas com deficiência em produtos, locais e serviços, e sim criar esses produtos locais e serviços desde o começo com todas as pessoas em mente, com e sem deficiências.
No desenvolvimento de jogos isso implica em, ao invés de criar games feitos para pessoas sem deficiência e depois adaptá-los para pessoas com deficiência, pensar o desenvolvimento deles desde o começo tendo em mente tanto usuários sem como com deficiência, projetos que já nasçam com a preocupação de serem acessíveis, uma mentalidade de desenvolver jogos para todos, e não para um “usuário padrão”.
Nada sobre nós sem nós
Mas como desenvolver jogos desse modo? Como saber o que funciona ao desenvolver um jogo que permita que pessoas com deficiência também consigam jogá-lo sozinhas?
A resposta que muitos desenvolvedores encontraram passa por um lema histórico dos movimentos de pessoas com deficiência, um lema que diz “nada sobre nós sem nós“, e é um modo de dizer “nada que nos diga respeito deve ser feito sem nossa participação“; a luta das pessoas com deficiência fez os desenvolvedores perceberem que para produzir jogos cuja experiência funcione para o maior número possível de pessoas era necessário envolver jogadores com deficiência no processo de desenvolvimento, garantir que fizessem parte dos testes dos games e fossem ouvidos; incluindo pessoas que possuem tipos diferentes de deficiência, afinal as deficiências são diversas e exigem preocupações específicas: existem deficiências permanentes e temporárias, visuais, auditivas, motoras, cognitivas e relacionadas ao envelhecimento, isso pra não ir além das deficiências e falar de neurodiversidade em geral e temas como autismo, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e outras condições neuro diversas.
Acessibilidade nos jogos: recursos diversos para jogadores diversos
Levar em consideração todas essas condições no desenvolvimento de um game é fundamental para que o máximo possível de pessoas possa aproveitar a experiência daquele jogo.
Pense por exemplo nas pessoas com deficiências visuais, como cegos, daltônicos ou pessoas com baixa visão: videogames trazem vídeo já no seu nome, envolvendo gráficos e estímulos visuais como conceitos básicos; para que uma pessoa com deficiência visual aproveite um jogo é necessário criar opções para que ele não envolva apenas a visão e levar em conta a formatação e cores dos textos, o contraste entre elementos do cenário do jogo, a interface de usuário e o plano de fundo.
Além de, é claro, se preocupar com aspectos sonoros, com estímulos e respostas em forma de som ao invés de unicamente visuais, dublagem e narração para leitura de textos em jogo, controles de volumes separados para música, som ambiente e textos, e também há o recurso da gravação binaural, técnica que permite criar um efeito de som ambiente simulando a percepção de distância através do som se utilizando de fones de ouvido, algo capaz de simular a sensação de ouvir vários sons vindos de distâncias diversas num ambiente real.
Já surdos precisam de boas legendas para diálogos e narrativas e traduções de sons importantes no gameplay em forma de textos, ou estímulos visuais como opções aos efeitos sonoros que, em muitos jogos, interagem com o jogador. Além de opção de chat escrito em jogos online que dependem de comunicação com outros jogadores.
Quanto às pessoas com deficiências motoras as dificuldades em geral estão relacionadas aos controles, se você não consegue apertar os botões da maneira que o jogo exige você simplesmente não consegue jogar bem. Opções como livre remapeamento de botões permitem que usuários com esse tipo de deficiência configurem os controles livremente para encontrar um modo mais confortável de jogar de acordo com as suas necessidades, opções como botões turbo também ajudam usuários que não conseguem apertar botões rapidamente por muito tempo. Sim, pode-se considerar q função turbo daqueles controles piratas dos famiclones das décadas de 80 e 90 opções de acessibilidade.
Nesse sentido a Microsoft deu um passo interessante ao desenvolver o Xbox Adaptive Controller, controle de Xbox One voltado para pessoas com mobilidade limitada, com múltiplas entradas de comandos personalizáveis.
Já as deficiências cognitivas em geral encontram barreiras na dificuldade dos jogos, não só o “easy, normal e hard”, mas a complexidade do jogo em si, das tarefas que ele envolve e o tanto de coisas acontecendo ao mesmo tempo que exigem percepção e resposta do jogador. Tornar um jogo acessível a pessoas com deficiências cognitivas ou intelectuais envolve opções que diminuam a complexidade do game. Desde a clássica escolha de níveis de dificuldade, controle sobre a velocidade de textos, a opção de ter tutoriais detalhados e lembretes do que o jogador precisa fazer em determinado momento.
Esse tema de diminuição da complexidade ocasionalmente gera algumas polêmicas: alguns jogadores argumentam que acrescentar opções que tornam um jogo mais fácil seria “alterar a essência” ou “tirar o desafio” daquele jogo. Quando na verdade nada impede que aquele jogador continue jogando do modo mais difícil possível se essa for a experiência que ele quer. Existem pessoas que em determinados momentos querem mais relaxar do que enfrentar desafios, e existem pessoas com deficiências cognitivas para quem a complexidade daquele jogo pode ser uma barreira: uma questão que não é sobre estar apto a um desafio, mas de simplesmente poder jogar o jogo. Por isso, se você pensa assim, fique tranquilo, opções de redução de complexidade não vão mudar a jogabilidade pra você que quer jogar no hard, só abrirão a experiência do jogo para mais pessoas que não são como você.
Com a questão da acessibilidade nos jogos em mente e alguns recursos que ela pode e deve envolver sempre que possível, vamos a alguns casos reais de jogos com bons recursos que os tornam acessíveis, a lista poderia ser maior, mas pra não alongar demais o texto vamos ver 6 casos, começando por…
6. Moss
Vamos abrir nossa lista com um jogo de aventura em realidade virtual, os games que usam acessórios como o Playstation VR e o Oculus Rift em geral são exemplos de jogos desenvolvidos sem preocupação com acessibilidade. Na verdade, muitos desses jogos não seriam o que são se fosse possível jogá-los sem se mexer, por exemplo. Mas o jogo de que vou falar mostra que é possível desenvolver um jogo em VR tendo em mente que ele pode ser tão inclusivo e acessível quanto a tecnologia do momento permite.
Falo de Moss, jogo de aventura em VR desenvolvido pelo estúdio independente Polyarc, nele se misturam perspectivas de primeira e terceira pessoa na medida em que o jogador assume o papel do leitor dum livro de fantasia protagonizado pela simpática rata Quill, daí o jogador/leitor deve guiar Quill na sua aventura, sendo que a ratinha está ciente da sua presença e se comunica com ele.
O game oferece experiência imersiva e um visual fascinante, contando com legendas que o tornam mais acessível, além de brilhos e contornos especiais que permitem identificar pontos chave e não perder a personagem de vista mesmo quando ela está atrás de objetos ou partes do cenário; o jogo ainda peca por não incluir nas legendas indicações dos diversos sons ambientes e se focar apenas nas palavras.
Mas o recurso de acessibilidade que chama mais atenção no game é o fato de que Quill se comunica com o jogador usando ASL, sigla para American Sign Language, ou língua americana de sinais. As línguas de sinais são idiomas visuais que parte da comunidade surda utiliza. No Brasil, por exemplo, existe LIBRAS, a Língua Brasileira de Sinais que muitos surdos utilizam. A ASL é uma língua de sinais utilizada nos Estados Unidos , e ter um jogo em que o protagonista se comunica nesse tipo de idioma sem dúvidas não é só inclusivo como chama a atenção para a questão da acessibilidade nos jogos através de um game em realidade virtual!
Seguindo com os estúdios independentes vamos passar a…
5. Hades
A desenvolvedora independente Supergiant Games conseguiu sucesso considerável com o seu quarto jogo: Hades, um RPG Roguelike lançado em 2018 para Nintendo Switch e posteriormente para PC, Playstation 4, Playstation 5, Xbox One e Xbox Series X/S. O sucesso de Hades se deve a um uma narrativa interessante e um gameplay frenético, e justamente o gameplay frenético de um roguelike pode ser uma dificuldade para pessoas com deficiência. Pensando nisso a desenvolvedora incluiu no game opções que o tornam mais acessível: por padrão o game conta com legendas destacadas por um plano de fundo, o que ajuda bastante, apesar de ficarem faltando as opções de personalização dessa legenda. Mas os recursos não param por aí, Hades possui a opção de remapear completamente os controles, além de ajustes diversos de imagem e opção de desabilitar o balanço da tela.
Mas os destaques do game quanto à acessibilidade ficam por conta das armas e do “modo deus”: as diversas armas do jogo contam cada uma com um estilo individual de jogabilidade, isso permite que jogadores com deficiências escolham uma arma com um estilo de jogo mais confortável para si. Enquanto o “modo deus” é uma decisão inteligente em relação ao nível de dificuldade do jogo; nesse modo o dano recebido pelo personagem é reduzido em 20%, e a cada vez que o personagem morre o dano é reduzido em mais 2% até um máximo de 80% de redução de dano. Com isso, esse modo permite que o jogo se adapte gradualmente às dificuldades do jogador, lhe oferecendo uma experiência mais satisfatória, os jogadores que quiserem mais desafio podem simplesmente não ativar o modo ou mesmo usar o “hell mode” que eleva bastante a dificuldade do game.
Outro destaque dessa solução é que o game convida e encoraja o uso desse modo a jogadores pra quem a dificuldade padrão do game o tornaria inacessível ou apenas desejam uma experiência com mais foco no enredo do que no desafio de morrer e voltar várias vezes até dominar completamente o game, não há por parte do jogo qualquer humilhação ou menosprezo em relação ao jogador por estar escolhendo um nível de dificuldade mais fácil. Isso é essencial, não retira nada da experiência de quem deseja a dificuldade máxima e torna o jogo mais acessível a um grande número de jogadores. Não resta dúvida: diferentes níveis de dificuldade são um recurso de acessibilidade nos jogos e a Supergiant Games encontrou uma solução interessante nesse sentido. E posteriormente as opções de acessibilidade de Hades ainda foram incrementadas pela comunidade de jogadores que fizeram patches de acessibilidade!
Mas os roguelike não são o único gênero que pode e deve ser mais acessível, os hack n slash também podem ser inclusivos, como podemos ver de maneira bem interessante no próximo game da nossa lista…
4. A Blind Legend
A Blind Legend é um jogo para PC’s e plataformas móveis desenvolvido pela Dowino e lançado em 2015 com uma proposta simples: ser um hack n slash sem gráficos. Isso mesmo que você leu, sem gráficos, não há qualquer elemento visual no game! Em A Blind Legend você controla o cavaleiro cego Edward Blake numa jornada para salvar sua esposa com o auxílio da sua filha Louise. Mas como se desenrola um jogo sem gráficos?
A resposta é simples: através do som, mas não qualquer som, e sim um “som 3D” de qualidade; lembra que falei sobre gravação binaural? Essa é a tecnologia utilizada no game, através dos fones de ouvido o jogador ouve os diversos sons com uma noção realista de distância entre eles, e esses sons se modificam à medida que o jogador se move permitindo criar uma espécie de “imagem auditiva” do ambiente, a voz da filha do personagem pode ser ouvida de modo a criar no jogador um senso de distância e cada tipo de inimigo tem um som diferente, bem como seus movimentos e ataques, permitindo que o jogador aprenda a atacar e bloquear no momento certo apenas pelo som de um golpe se aproximando!
Além de navegar pelo ambiente do jogo e se envolver na história através duma ótima dublagem, aliás todo aspecto sonoro desse jogo é ótimo, afinal ele é fundamental na proposta do game e consegue entregar uma experiência imersiva de um jogo de aventura e ação sem gráficos!
Uma observação descuidada poderia levar à afirmação de que este é um jogo para deficientes visuais, mas isso está longe da verdade, A Blind Legend é um game para todos, ele tem total acessibilidade para deficientes visuais, mas pessoas que enxergam também podem aproveitar um game que te força a se valer primariamente de outro sentido que não a visão, gerando uma experiência sensorial completamente diferente, imersiva e que vale a pena ser experimentada! O jogo está disponível para PC, MAC, IOS e Android e, assim como Moss e Hades, foi desenvolvido por um estúdio independente. Mas os grandes estúdios também vem respondendo às demandas dos jogadores com deficiência e demonstrando preocupação com acessibilidade nos jogos, como no caso do próximo jogo da nossa lista…
3. Assassin’s Creed Valhalla
No desenvolvimento do vigésimo segundo título da sua famosa franquia de assassinos furtivos a Ubisoft demonstrou intenção de que o acesso à experiência de jogo que estavam produzindo fosse amplo o bastante para incluir jogadores com deficiência.
O resultado foi um jogo com recursos interessantes de acessibilidade: existe opção de legendas para as falas e é possível alterar o tamanho delas e habilitar um plano de fundo para destacá-las, mas não é possível alterar a cor das letras.
Os controles podem ser remapeados, mas não completamente, deixando um nível considerável de personalização para jogadores com dificuldades motoras, mas muitos ainda irão encontrar dificuldades nesse sentido.
Quanto aos aspectos visuais existe um modo que altera as cores do jogo para que pessoas com diferentes tipos de daltonismo tenham menos dificuldade ao distingui-las, além de possibilitar ajustes de brilho, contraste e alteração do tamanho de elementos da interface. Também há possibilidade de ativar sons de alertas de colisões e outras interações no jogo.
Já quanto à sua complexidade Assassin’s Creed Valhalla permite uma configuração que vai além das opções de “easy, normal e hard”: é possível personalizar a dificuldade separadamente para os combates, a exploração e os momentos de furtividade, também é possível pausar o jogo a qualquer momento e ele conta com diversos tutoriais com textos que não desaparecem rapidamente e os quick time events (aquelas cutscenes em que você precisa apertar botões em sequência) podem ser ajustados, mas ainda são possíveis situações em que o jogador tenha que ficar apertando velozmente um mesmo botão por um longo tempo, o que pode ser uma barreira para algumas pessoas com deficiência. E mais uma vez reitero que não estou falando do jogo não ter esses tipos de complexidades, mas de incluir a opção de removê-las caso necessário ou desejado.
O que Assassin’s Creed Valhalla faz quanto à acessibilidade na verdade é o mínimo que se espera dum game desse porte atualmente, pode parecer muita coisa da perspectiva de quem nunca pensou do ponto de vista da acessibilidade nos jogos, mas ainda deixa jogadores demais de fora da exploração das invasões vikings na Grã Bretanha do século IX.
Justamente por fazer o mínimo, mas demonstrar uma tendência, ele ocupa nossa terceira posição e é o primeiro jogo dessa lista feito por um estúdio grande, e vamos seguir nesse tipo de game com…
2. Gears 5
Jogos de tiro em primeira pessoa são bastante populares e existem várias franquias de sucesso no gênero. Num jogo desse tipo a clareza visual e sonora e a velocidade de reação dos jogadores são determinantes na experiência de jogo. Por essas características muitos desses jogos eram inacessíveis para pessoas com deficiência, e os recursos de acessibilidade que começaram a receber mais recentemente em geral ainda faziam com que um jogador com deficiência ficasse em desvantagem em relação a alguém sem deficiência. Mas um jogo foi desenvolvido tendo o mente o propósito de mudar tudo isso, falo de Gears 5, o mais recente FPS da franquia Gears of War.
E essa ideia não veio do nada: no início do projeto sua desenvolvedora, a The Coalition, organizou um evento sobre design inclusivo (lembram da diferença entre integração e inclusão?), esse evento durou dois dias e contou com vários gamers com deficiências, eles foram ouvidos não só sobre suas dificuldades ao jogar, mas sobre o porquê gostavam de jogar. Os desenvolvedores sem deficiência perceberam que os motivos que levavam aquelas pessoas com deficiência aos games eram basicamente os mesmos que faziam eles próprios jogarem, a diferença era que, para as pessoas com deficiência, os jogos tinham barreiras que as impediam de aproveitá-los por completo. Isso fez a equipe perceber que o problema da acessibilidade nos jogos não estava nas pessoas com deficiência, e sim nos jogos feitos sem pensar nelas, no processo de desenvolvimento desses jogos!
E percebemos que o lema “nada sobre nós sem nós” faz todo sentido: só a partir da experiência e participação de pessoas com deficiência desde o início do desenvolvimento a equipe pode desenvolver uma mentalidade que guiasse o projeto para que ele se tornasse acessível e inclusivo sendo um autêntico jogo da franquia capaz de agradar antigos e novos jogadores com e sem deficiências.
O resultado foi além do básico conseguido pela Ubisoft em Assassin’s Creed Valhalla; em Gears 5, as legendas não são só completamente personalizáveis e possuem plano de fundo de destaque como informam muito mais do que o que está sendo falado: elas indicam quem está falando, o tom de voz, barulhos, se a pessoa está falando através de algum rádio ou equipamento, e indicam até mesmo quando uma música de fundo para de tocar; isso pode parecer trivial para quem não é surdo, mas pense por exemplo nos vários jogos em que, quando uma cena de combate termina, a música intensa para te indicando que a luta acabou e não há mais inimigos ali, a opção de ter uma legenda indicando que a música cessou dá a um jogador surdo acesso a essa informação no jogo.
Os controles por sua vez são completamente remapeáveis e incluem opções que permitem segurar um botão em situações em que teria ele que ser apertado rapidamente, há suporte específico para o xbox adaptive controller de que falei , além de assistência de alvos para facilitar a mira, opção de desativar o chacoalhar da câmera que causa náuseas em alguns jogadores nos games em primeira pessoa, opções personalizáveis de acompanhamento dos movimentos da câmera que ajudam no tempo de resposta de alguns jogadores, alertas sonoros e visuais personalizáveis para inimigos e diversos elementos na tela, incluindo indicações de onde estão vindo os tiros e ajustes de imagem para deficienctes visuais e opções para daltónicos que alteram os esquemas de cores e permitem destacar inimigos e outros personagens.
Há também opção de converter texto para voz e voz para texto, com um narrador dizendo o que está escrito em cada item dos menus e chats do modo multiplayer. Todas essas opções realmente fizeram com que muitas pessoas com deficiências diversas conseguissem aproveitar de verdade a experiência de um jogo da franquia pela primeira vez, inclusive o fato de que as opções de acessibilidade aparecem logo após abrir o jogo, facilitando para que jogadores com deficiência não tenham que penar até encontrar a opção que permite que tenham acesso ao que está na tela!
Existe um site chamado caniplaythat.com, que traduzido significa “eu posso jogar isso?”, nele reviews escritos por pessoas com deficiência classificam games quanto à sua acessibilidade, é uma ferramenta não só de incentivo a desenvolvedores mas muito útil a jogadores com deficiência em busca do que jogar, Gears 5 foi o primeiro jogo a conseguir nota máxima num review desse site, mostrando que a equipe da The Coalition conseguiu sucesso no seu trabalho.
Sucesso que se traduziu em vendas: o jogo atraiu fãs antigos e novos, incluiu no público alvo jogadores com deficiência e seus recursos de acessibilidade eram tão interessantes que algumas pessoas sem deficiência os usavam em situações temporárias, como pessoas que estavam em ambientes em que não podiam fazer barulho e mutavam o jogo se valendo das opções de legenda e indicações visuais para conseguir jogar perfeitamente sem precisarem do som, um grande acerto que ficou como exemplo para indústria de games, assim como o próximo e último jogo da nossa lista…
1. The Last of Us – Part II
Gears 5 tinha estabelecido um padrão para os grandes estúdios quanto à acessibilidade nos jogos; mas houve quem assumisse o desafio de elevar esse padrão, feito concretizado em 19 de junho de 2020, data de lançamento de The Last of Us – Part II.
Logo depois que o jogador abre o jogo algumas opções de acessibilidade já estão presentes, e entre elas estão configurações pré ajustadas para jogadores com deficiências visuais, auditivas e motoras, para o caso do jogador não estar com paciência no momento para configurar sua experiência de jogo com o máximo possível de personalização, isso porque o jogo conta com mais de 60 opções de acessibilidade que vão muito além do básico em todos os sentidos, quase todos os recursos que mencionei quando falei de Assassin’s Creed Valhalla e Gears 5 estão presentes no jogo com muito mais opções que permitem personalizar minuciosamente a experiência de jogo para que ela fique não só jogável mas confortável para os jogadores mais diversos.
Se eu fosse listar todas as opções de acessibilidade de The Last of Us – Part II teria que escrever um longo artigo só para isso. O jogo tem modos de contraste elevado, pistas auditivas e vibratórias para jogadores cegos ou com baixa visão, assistente de mira, voz para os textos dos menus, cores diferenciadas para inimigos, personagens e objetos importantes, configurações de dificuldade que vão muito além de “easy, normal e hard”, como configuração do dano causado por inimigos, número de checkpoints, intensidade da reação de aliados ou frequência e quantidade de munição encontrada e muito mais.
É difícil falar das opções desse game por que são tantas que é quase como se permitissem que o jogador criasse um mod personalizado para jogar!
Algumas dessas inúmeras configurações possíveis deixam o jogo à primeira vista completamente diferente, e na verdade elas não beneficiam apenas jogadores com deficiência, é possível aumentar ou diminuir a intensidade de vários aspectos do jogo como combate, cenas de furtividade, coleta de itens e várias outras opções minuciosas para que você consiga uma experiência com o que você gosta e deseja do jogo no momento. E isso não tem nada a ver com “trapaça” ou qualquer coisa desse tipo; mas significa que muito mais pessoas podem aproveitar o jogo, mas não só isso, muito mais pessoas, incluindo as sem deficiência, podem personalizar o jogo para conseguir o tipo de experiência que querem dele, inclusive a experiência de não alterar nada e jogar o game sem qualquer dessas configurações.
The Last of Us – Part II recebeu um premio nesse sentido: entre as várias categorias em que saiu vencedor no Game Awards de 2020 estava o de inovação em acessibilidade, e a mera existência dessa categoria no Game Awards mostra como a preocupação quanto à acessibilidade na indústria de games é crescente.
Essa realização dum jogo que elevou o padrão dos recursos de acessibilidade nos grandes estúdios não é obra do acaso: muitos consideram The Last of Us – Part II o jogo mais acessível já feito pela preocupação real com essa questão desde o início do projeto, e no desenvolvimento de um game o quanto antes você se preocupa com qualquer aspecto dele menos custoso é realizar aquilo. De começo a desenvolvedora do game, a Naughty Dog, contratou dois profissionais para chefiarem exclusivamente o desenvolvimento dos recursos de acessibilidade: os desenvolvedores Emilia Schatz e Matthew Gallant. E eles sabiam o que fazer: nada sobre nós sem nós! O ponto inicial foi ir até diversos jogadores com deficiência, incluí-los na programação de testes, ouvi-los sobre as suas dificuldades e , como desenvolvedores, resolver cada um daqueles problemas específicos.
Assim, esse jogo não só elevou o padrão dos recursos em si, mas do próprio modo de pensar acessibilidade como uma parte óbvia e básica de qualquer grande projeto de game, ou, resumindo em um único conceito: inclusão. E o jogo ficou tão inclusivo que alguns deficientes visuais produziram reviews sobre ele que falavam de seus diversos aspectos como enredo e jogabilidade, mas não focaram nos recursos de acessibilidade em si. Isso mostra como as pessoas com deficiência não deveriam ter mais que falar de acessibilidade: o ideal é que um dia os diversos serviços, locais e produtos (incluindo jogos) sejam, por padrão, produzidos para o máximo possível de pessoas. Mas até lá são necessários os esforços de nós jogadores, com e sem deficiência, para que a indústria de games siga caminhando nesse sentido e tornando os jogos tão acessíveis quanto a tecnologia de cada momento permita.
Desenvolver jogos para todos é uma tendência
Todos esses esforços da indústria nesse sentido não vieram ao acaso, são fruto da luta de jogadores com deficiência ao longo dos anos, existem inclusive muitas histórias de jogadores com deficiência que se tornam streamers ou entram em círculos competitivos e chamam atenção para a questão da acessibilidade em diversas plataformas; há, por exemplo, o caso de Carlos Vazquez, jogador cego de games de luta que chegou à final da EVO, maior campeonato do gênero, e com isso acabou chamando a atenção da NetherRealm Studios para melhorar a acessibilidade de Injustice. Eu só não citei as histórias desses jogadores porque o objetivo desse artigo não é usar as pessoas com deficiência para produzir narrativas de superação pra pessoas sem deficiência consumirem, e sim falar sobre acessibilidade em games.
Nesse sentido eu já citei o site caniplaythat.com que trabalha com reviews e notícias escritas por pessoas com deficiência sobre acessibilidade nos jogos, existe também a associação Ablegamers que vem há vários anos lutando pela acessibilidade nos jogos e já conta com representação no Brasil. Esse associação inclusive produziu um guia prático de acessibilidade nos jogos para desenvolvedores, e há muitos outros materiais nesse sentido; embora uma acessibilidade total nos games ainda seja utopia, atualmente negligenciar questões de inclusão e acessibilidade no desenvolvimento de jogos em geral não tem outros motivos senão a preguiça e o desinteresse. Até mesmo a Eletronic Arts, que tem fama de mercenária, recentemente abriu mão de algumas patentes de recursos de acessibilidade que tinha desenvolvido para que quaisquer desenvolvedores de quaisquer empresas possam utilizá-las. Sem dúvidas uma atitude interessante que também exemplifica a preocupação crescente com acessibilidade na indústria de games.
E esse interesse na acessibilidade não se dá por caridade ou qualquer coisa parecida; do ponto de vista da rentabilidade incluir pessoas com deficiência no modo de pensar o projeto de um game significa aumentar bastante o público alvo daquele jogo, mas a questão é muito maior que isso: é sobre produzir games para todos, sobre desenvolvedores entenderem que o sentido do seu trabalho é produzir jogos para que jogadores reais joguem, e que esses jogadores incluem pessoas diferentes com tipos de experiência diferentes. Pessoas com deficiência tem tanta dignidade quanto as sem deficiência e os games são igualmente importantes para ambos, por isso pessoas com deficiência devem também poder jogar videogame se quiserem e se incluírem nas comunidades de games que tanto cresceram nesses últimos anos de pandemia, afinal inclusão de verdade vai além de oferecer um gameplay, é também possibilitar opinião, experiência e ingresso em comunidades.
Por todos esses motivos já existe e segue se desenvolvendo a consciência de que mudanças no sentido de tornar os games mais acessíveis dependem diretamente de mudanças nas suposições feitas a nível de design e desenvolvimento dos jogos. Os desenvolvedores sérios hoje já não veem os recursos de acessibilidade nos jogos como um “bônus”, um “algo a mais”, e sim uma parte elementar do desenvolvimento de um game, sobretudo nos projetos de grande orçamento.
Por fim, quero pedir desculpas por qualquer equívoco que eu tenha cometido nesse artigo, isso porque, apesar de entender a importância do lema “nada sobre nós sem nós”, eu não tive acesso a qualquer pessoa com deficiência na elaboração desse texto, ou seja, sou alguém sem deficiência falando do tema. Por isso, sinta-se livre para opinar, criticar e corrigir, e continuaremos incentivando e cobrando a indústria de games por acessibilidade, afinal somos todos iguais porque somos todos diferentes e todos merecemos curtir um bom jogo!
Fique ligado no Resenha Game Club para mais conteúdos como este, em breve!